Dada sua origem peculiar, o terror seria capaz de causar uma forma simultaneamente mais sutil e poderosa de medo. Nesta distinção, evidencia-se seu caráter eminentemente circunstancial, perspectivista, enquanto o horror seria franqueado mesmo aos animais mais brutos, como um subproduto colateral da luta cotidiana pela sobrevivência.[1]
Timothy K. Beal, tratando da presença do horror e do terror nos livros da Bíblia Hebraica, considera que esses sentimentos são aí instilados não pela dura realidade do dia a dia, já que a brutalidade das relações humanas e a fragilidade diante das forças da natureza eram corriqueiras no período de produção destes relatos, a Idade do Ferro. Antes eles seriam frutos do global sentimento de desorientação provindo da constatação da contingência e ignorância humanas diante daquilo que lhe escapa o controle e, justamente por isso, o fascina e o ameaça: o caos primordial e / ou dos insondáveis desígnios divinos.[2] Nesse ponto, o terrível pode fundir-se com o sublime, produzindo justamente aquilo que Rudolph Otto, em texto já quase centenário, definiu como sendo o sagrado: mysterium tremendum et fascinans.[3]
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Sano di Pietro (1405-1481), Catarina bebe do lado de Cristo. Séc. XV, Siena, Itália. |
O Evangelho de João trata em certa passagem da surpresa, da desorientação e do terror dos judeus diante das declarações de Jesus a respeito de ser ele o pão vivo descido do céu de quem os fiéis deveriam comer para viver eternamente; frente a estas falas, mesmo os seus discípulos mais próximos comentavam entre si, registra o evangelista, a respeito da dureza destas palavras (João 6:32-61).[4]
Depois de séculos acostumados às doutrinas cristãs tradicionais sobre a Eucaristia, este espanto, este terror agora nos parecem afetados, quase hipócritas; partindo da reflexão de Beal, entretanto, não se pode desconsiderá-lo assim tão simplesmente. Da linguagem alegórica, espiritual, do Jesus do Evangelho de João, surgiu um autêntico medo, um autêntico escândalo: como esse homem poderia dar-a seus ouvintes a sua carne a comer? (Jo 6:52).
O cruzamento do discurso do 6º capítulo do Evangelho de João com as narrativas dos Evangelhos Sinópticos - Marcos, Mateus e Lucas - a respeito da Última Ceia celebrada por Jesus com seus discípulos antes da crucificação, feita memória no ritual eucarístico que passou a congregar os cristãos, atenuou e, de certa forma, desbotou o quão terrível este discurso de Jesus deve ter parecido não apenas aos seus ouvintes diretos, mas também aos destinatários do Evangelho de João e membros do seu círculo de redatores, que consideraram conveniente, entre tantas outras histórias, discursos e reações possíveis, registrados e produzidos pela memória, consignar por escrito justamente esse.[5]
Junto a esta consideração, é importante notar, por outro lado, que as menções ao rito da Ceia cristã causaram espanto, acusações e terror em grupos sociais que nunca haviam tido contato com sua teoria e prática, aos quais o único significado possível para as palavras nela ditas era o literal: daí as acusações de canibalismo feitas por gregos e romanos nos séculos II-III e por japoneses e chineses nos séculos XVI-XVII contra os cristãos.
Daí também, em derivação não prevista, as aproximações feitas na apologética protestante entre a missa católica e os festins canibais de aztecas e indígenas sul-americanos: a reafirmação da crença na realidade efetiva da transformação do pão e vinho consagrados em corpo e sangue de Cristo foi alvo fácil para aqueles grupos de cristãos interessados em fixar o escopo da metamorfose supostamente operada na Ceia apenas no plano do subjetivo e / ou do simbólico.
De outra parte, a ênfase contra-reformista nos ditos milagres eucarísticos, ocasiões em que a hóstia consagrada na missa realmente teria se transformado em carne, verificados na Idade Média Tardia e também nos períodos Moderno e Contemporâneo, ao mesmo tempo em que edificavam os fiéis católicos, tornavam sua definição da Ceia ainda mais terrível, em sentido estrito, para os não-católicos, tanto cristãos quanto não-cristãos: mysterium fascinans et tremendum...
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À esquerda: Diego de la Cruz (antes de 1480-1500). Missa de São Gregório. Barcelona, Catalunha, antes de 1480. À direita: Miguel Ximénzes (1462-1505) e aprendizes. Missa de São Gregório. Zaragoza, Aragão, c. 1500. |
Mesmo nos nichos secularizados do ocidente contemporâneo, os significados deste dar-se de comer e dar-se de beber, completamente deslocados de seu contexto religioso, são capazes de produzir imagens de terror e horror. Não precisamos chegar à paródia da Última Ceia veiculadas em um conhecido clipe de Marilyn Manson, que é pouco mais do que grotesco; nem às paródias zumbificadas da iconografia tradicional da refeição final de Jesus de Nazaré, que podem ser verificadas facilmente na rede. Apenas mencione-se as inúmeras estórias de vampiro no cinema e na literatura onde os mortos-vivos não apenas alimentam-se de sangue humano, mas, dando a suas vítimas seu próprio fluido vital, concedem-lhe uma espécie de sombria imortalidade, assim como um novo parentesco (literalmente sanguíneo), em ato que bem poderia ser tomado como uma interpretação demasiado literal das palavras de Jesus no citado trecho do Evangelho de João:
Em verdade, em verdade, vos digo: (...) Quem come minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna (...) Pois minha carne é verdadeiramente comida e o meu sangue é verdadeiramente bebida. Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele... (Jo 6:53-56)
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Trecho do rito de reanimação de Drácula figurado em Taste the Blood of Dracula, filme de 1970 dirigido por Peter Sasdy |
Quero aqui me concentrar especificamente em uma das cenas de Hellraiser 3, filme de 1992.[6] Ao contrário dos filmes anteriores da franquia, produzidos e situados na Grã-Bretanha, esse, que marca a primeira aparição dos Cenobitas nos EUA, quase não possui referências aos símbolos e rituais cristãos em seu desenrolar. Elas só emergem na construção do clímax do filme, quando a repórter Joey Summerskill, protagonista da trama, entra esbaforida em uma igreja católica em busca de abrigo da perseguição que lhe trava Pinhead. A mocinha do filme se dirige para o padre ali presente, gritando em desespero: eles continuam vindo, os demônios! Ao que o padre lhe responde calmamente: demônios não são reais, são apenas metáforas, parábolas... Então Joey lhe retruca em tom de ironia, apontando para Pinhead, que acabou de entrar, imponente, pela porta do templo: então que porra é aquela?
Os vidrais quebram-se aos pares quando o Cenobita caminha pelo corredor central da nave, rumo à sua presa; o padre procura lhe deter erguendo um crucifixo em sua direção e perguntando como ele (um demônio?) se atreve a entrar naquele local sagrado. Sarcástico, Pinhead cita ao clérigo o livro do Êxodo: não te prostarás diante desses deuses (Ex 20:5), e, aos risos, faz derreter a peça de metal na mão do sacerdote. Subindo ao altar, o Cenobita quebra a cruz que lá estava e, retirando um par de pregos de sua cabeça, simula sua própria crucificação; inflamam-se de modo anormal as chamas das velas enquanto ele abre os braços, inclina a cabeça para a esquerda (como na iconografia tradicional do Cristo padecente) e proclama: Eu sou o caminho - não por acaso, uma declaração de Jesus retirada do Evangelho de João (14:6).
Parte-se o vitral com um crucifixo vermelho que, por trás do altar, e de Pinhead, dominava a fotografia da cena; racha-se o próprio altar; o padre, escapa do abraço protetor de Joey, que o acolheu quando sua mão foi ferida e segue para o Cenobita gritando que ele queimará no inferno por isso tudo. Pressionando o ombro do sacerdote, Pinhead faz com que ele se ajoelhe: queimar? que imaginação mais limitada!
De seu lado aberto, retira um pedaço de carne que introduz na boca do sacerdote dizendo: este é o meu corpo, este é o meu sangue; felizes os que vêm para a minha ceia - um eco da narrativa evangélica da Santa Ceia e, mais ainda, das palavras que, na missa católica, precedem imediatamente à distribuição da hóstia consagrada aos que assistem ao rito. Joey mexe na Configuração dos Lamentos, o artefato capaz de invocar e de expulsar os Cenobitas e provoca Pinhead; o padre, emudecido, é afastado com um empurrão e tomba de bruços.
Essa cena, especialmente chocante para as sensibilidades religiosas, mas aterrorizante também para um público mais amplo e não particularmente devoto, não é nada original. Imediatamente, ela se baseia em uma sequência que tem como cenário o interior de uma igreja e que aparece em A hora do pesadelo 5: o Maior Horror de Freddy, de 1989.[7]
Nessa, a protagonista do filme, Alice Johnson vê-se presa em um sonho no qual assiste ao trabalho de parto de Amanda Krueger, a mãe de Freddy. Em meio à grande confusão, o bebê nasce deformado, como se já tivesse nascido queimado e, escapando das mãos dos médicos e enfermeiras, sai correndo. Alice o segue até a nave de uma igreja, mesmo cenário em que ela o derrotou no fim do filme anterior da franquia. No templo, aparentemente abandonado, o bebê se esconde embaixo do clássico suéter listrado de Freddy; seu choro e grunhidos cada vez mais altos acompanham o desmoronamento do edifício; os vitrais se rompem e o chão se dobra de maneira anormal, relevando fogo subterrâneo e erguendo o presbitério.
Rapidamente o bebê cresce, tornando-se o Freddy Krueger adulto e assassino; coloca sua característica luva de lâminas e, de pé sobre o altar, contra a luz que emana de vitral partido onde estava um crucifixo vermelho, abre os braços em uma paródia da crucificação, proclamando: é um menino! O vidro se parte e Amanda, vestida de freira, aparece por uma porta, dizendo que iria impedir o renascimento de seu filho e dando instruções para Alice encontrá-la no mundo desperto. A porta se fecha com um baque e Alice desperta em um restaurante, horas depois do início do sonho.
A citada cena protagonizada por Pinhead, para além dos horrores mais imediatados que apresenta (pois quem não temeria por sua segurança se perseguido por semelhante monstruosidade?), aterroriza não por se basear naquela protagonizada por Freddy Krueger, muito menos densa de significados sacros / blasfemos, mas por recuperar um significado cuidadosa e duramente sublimado por uma codificação ritual precisa na missa católica.
A sequência de Hellraiser 3 faz talvez emergir, pelo escândalo, ressignificado e quase irreconhecível, um distante eco do mesmo esponto e terror sentido por aqueles já remotos judeus que talvez ouviram Jesus de Nazaré dizer que era ele mesmo a comida e bebida que pretendia dar-lhes para a obtenção da vida eterna.
Post scriptum. A imagem que serve epígrafe a este texto foi tirada de uma coleção de caricaturas veiculadas na revista anti-religiosa soviética Bezbozhnik (Безбожник, Ateu), publicada no período de 1922 a 1941, sendo que entre 1923 e 1931 contou com uma edição diária, Ateu no local de trabalho.[8]
A publicação foi fundada e gerida como voz oficial da Liga dos Ateus Militantes (LAM), uma organização que congregava membros do Partido Comunista, mas que, contudo, não estava oficialmente ligada ao Estado Soviético. A URSS adotou uma posição formal de ateísmo de estado após a Revolução de 1917, mas essa não foi uma ruptura simples.
A expropriação dos bens da Igreja e a perseguição e assassinato de clérigos cristãos foi certamente a substituição mais óbvia e cruenta do poder, mas o escopo reivindicado pela revolução era o de uma massa gigante de terra, a maior parte rural e habitada por camponeses muito mais do que piedosos, de modo que a cruzada cultural contra a religião foi uma campanha pelos corações e mentes dos cidadãos que pudessem resistir a uma secularização tão súbita quanto maciça. Neste empreendimento titânico, o uso de imagens terríveis na propaganda foi comum, cumprindo elas o papel de enfatizar uma percepção da religião como uma perversidade inimiga dos trabalhadores e serva dos grandes capitalistas.
A imagem-epígrafe joga, com o fim de causar horror, com o tema iconográfico da Última Ceia e com a literalidade que os ouvintes de Jesus atribuíram à sua fala consignado no sexto capítulo do Evangelho de João. Na mesma coleção de onde a retirei, encontrei outra caricatura que se refere indiretamente ao mesmo trecho do Novo Testamento, também invertendo-o de forma grotesca para causar horror e terror que ajudassem a corroborar o sentimento anti-religioso.
A imagem de um Buda de sorriso maligno esmagando uma multidão de trabalhadores e produzindo desta macabra matéria-prima um vinho com o qual se embriagam militares, religiosos, aristocratas e capitalistas, devidamente detratados, é um documento da amplitude do sentimento anti-religioso promovido pela LAM, não voltado apenas contra a Igreja Ortodoxa Russa ou contra cristãos, mas contra todas as crenças presentes no enorme território reivindicado pelos bolcheviques como espaço de sua revolução.
Mais ainda, não é difícil imaginar o incremento da propaganda anti-religiosa que utilizava também imagens das religiões características do Extremo Oriente como estando associado às duras fases finais da disputa entre URSS e Japão na Segunda Guerra Mundial.
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À esquerda: Lucas Cranach, o Velho (c. 1470-1553), A união sacramental, c. 1550. (O personagem portando o cálice à esquerda da gravura é o reformador Martinho Lutero). No centro: Jean Bellegambe, parte central do Tríptico do banho místico das almas. 1/3 do séc. XVI, Lille, França. À direita: frontispício de edição das Constituições da Mínima Congregação dos Irmãos Enfermeiros Pobres. 1634, Madri, Espanha. |
Por outro lado, contudo, como já se mencionou, essa imagem do buda-lagar de seres humanos também retoma e perverte uma das matrizes imagéticas que a arte cristã fez derivar do discurso de Jesus no sexto capítulo do Evangelho de João. Na imaginação latina, da Idade Média à Reforma e ao Barroco colonial, desse arrazoado derivou o tema iconográfico da cruz e / do corpo do crucificado como fonte da qual os fiéis bebem o sangue de seu redentor.
Na sensibilidade religiosa bizantina e eslava, por um deslizamento significativo, ele foi dar na iconografia da Fonte Vivificante, que funde em um único conjunto imagético o Menino-Deus a ser crucificado, o sangue e água que jorraram de seu lado na cruz, sua Virgem Mãe, a fonte que remete ao batismo, à purificação das impurezas espirituais e físicas, e à fertilização da terra seca; não por acaso, seu recebimento, associado à descoberta de uma fonte sagrada na Constantinopla da primeira metade do século V d.C., é comemorado nas Igrejas de tradição bizantina na primeira sexta-feira depois da Páscoa. O buda-lagar de gente não exclui tais significados, mas, antes ao contrário, extrai deles sua eficácia justamente ao retorcê-los, fazendo-os uma outra - e terrível - coisa.
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À esquerda: Jean Bellegambe, parte central do Tríptico do precioso sangue de Cristo. 1/3 do séc. XVI, Lille, França. À direita: ícone da Virgem Maria invocada como Fonte Vivificante. Séc. XVIII, São Petersburgo, Rússia. |
Referências
[1] Heloisa Seixas, 'Introdução'. In: Heloisa Seixas (org. e trad.). Depois: seis histórias de horror e terror. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 7.
[2] Timothy K. Beal. Religion and its monsters. Routledge: Nova Iorque, 2002. p. 28-30.
[3] Rudolf Otto. O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo / Petrópolis: EST / Vozes, 2007.
[4] As passagens bíblicas aqui referenciadas foram todas citadas a partir da Bíblia de Jeursalém - coordenação editorial de José Bortolini; tradução de Euclides Martins Balanci et al. São Paulo: Paulus, 2002.
[5] Para uma introdução a algumas questões referentes à redação dos Evangelhos, ver o 12º capítulo de: John B. Gabel e Charles B. Wheller. A Bíblia como literatura. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Mana Stela Gonçalves; apresentação e anexos à edição brasileira de Johan Konings. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2003.
[6] Hellraiser 3: Hell of Earth. Direção de Anthony Hickok. Roteiro de Clive Barker, Peter Atkins e Tony Randel. Produção de Christopher Figg, Lawrence Mortorff e Clive Barker. EUA / Canadá, Fifth Avenue Entertainment / Trans Atlantic Entertainmente. 1992. 93 min, son., color.
[7] A Nightmare on Elm Street 5: The Dream Child. Direção de Stephen Hopkins. Roteiro de Wes Craven, John Skipp, Craig Spector e Leslie Bohem. EUA, New Line Cinema / Heron Communications / Smart Egg Pictures / The Fourth New Line-Heron Joint Venture. 1989. 89 min, son., color.
[8] 'The gory and grotesque art of soviet antireligious propaganda'. Dangerous minds. Artigo anônimo, publicado em 17 de junho de 2014 às 06h52. Disponível em <http://migre.me/pHJtE>. Acesso em maio de 2015.